28 de agosto de 2016

Direito Bancário: introdução

Hoje venho falar-vos um pouco de Direito Bancário. Bem sei que o cerne de quem frequenta o curso de Direito não abrange o estudo desta matéria, mas considero ser de extrema utilidade, pelo que desenvolverei alguns aspetos que considero pertinentes.

Ora bem, antes demais, o Direito Bancário abrange normas e princípios jurídicos conexionados com a banca, abarcando o universo relativo aos bancos, às instituições de crédito, às sociedades financeiras e, em geral, à atividade desenvolvida por essas entidades, com os seus clientes.
Atentemos no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (DL n.º  298/92, de 31 de Dezembro), art. 2.º:
"São instituições de crédito as empresas cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria mediante a concessão de crédito."
"São também instituições de crédito as empresas que tenham por objeto a emissão de meios de pagamento sob a forma de moeda eletrónica."

As instituições de crédito comportam diversas espécies – desde os bancos às entidades enumeradas no art. 3.º do RGIC, realizando os bancos a generalidade das operações reservadas às instituições de crédito. Às restantes instituições de crédito cabe realizar as atividades que se lhes apliquem por via legal.
As sociedades financeiras podem, também, realizar apenas operações que lhes sejam especialmente facultadas e não são instituições de crédito (art. 5.º RGIC), sendo que o legislador enumera quais as sociedades financeiras (art. 6.º, nºs 1 e 2 RGIC).

O Direito Bancário regula duas grandes áreas:
   ◦ Direito bancário institucional ou organização do sistema financeiro – debruça-se sobre os bancos e demais instituições, as condições de acesso à sua atividade, a regulação ou supervisão, a fiscalização e as diversas regras conexas.
               Este dispõe de uma forte delimitação:
                    - Direito público: tem a ver com a função e atuação financeira do Estado. Entre nós esse papel é, de modo alargado, assegurado pelo Banco Central – o Banco de Portugal (Lei Orgânica – Lei n.º 5/98, de 31 de Janeiro). A este cabe-lhe gerir as disponibilidades externas do País, agir como intermediário nas relações monetárias internacionais do Estado, velar pela estabilidade do sistema financeiro nacional e aconselhar o Governo nos domínios económico e financeiro (art. 12.º da LOBP).
               Compete-lhe como banco emissor, emitir moeda (art. 6.º LOBP e art. 106.º TCE), ser entidade fiscalizadora (art. 17.º LOBP), detendo ainda poder normativo através da publicação de avisos (art. 99.º RGIC).
               Acrescentemos ainda o poder de superintendência do Governo (art. 91.º do RGIC).
                    - Direito das sociedades comerciais.
                    - Direito privado: cumpre referir o Título VI do RGIC, atinente a regras de conduta, onde surgem importantes deveres.
                    - Direitos instrumentais e acessórios: Por exemplo, regras de registo (art. 65.º e ss RGIC) ou regras contra-ordenacionais (art. 201.º RGIC).

   ◦ Direito bancário material ou atividade das instituições de crédito e sociedades financeiras – relações que se estabelecem entre a banca e os particulares.
                    O dinheiro é a razão de ser do direito bancário, pois sendo este a bitola de valor das coisas e meio geral de trocas, implica a intervenção de entidades especializadas – a banca («intermediação financeira»).
                    À partida é um direito contratual, reportando-se a determinados contratos comerciais, submetendo-se ao Direito das obrigações, com as particularidades ditadas pela sua natureza comercial.
                    Os atos bancários não esgotam, contudo, o universo do Direito bancário material:
                         - vinculações extranegociais: deveres de informação e de lealdade assentes na lei ou no princípio geral da confiança (pré-negociais ou pós-eficazes);
                         - responsabilidade bancária: instituto geral de responsabilidade civil;
                         - deveres legais e as situações jurídicas absolutas que devem ser particularmente aplicáveis nas situações bancárias.

  • Características do Direito Bancário

1) Direito privado
O direito bancário é direito privado. O qualificativo público ou privado não cabe a normas isoladamente tomadas, mas apenas a sistemas ou subsistemas – uma mesma regra pode ser pública ou privada, consoante a sua inserção (uma obrigação pecuniária, por exemplo, será pública se corresponder a um dever tributário; será privada quando preencha um mútuo).

Direito bancário material é privado: assenta em contratos comerciais, em cláusulas contratuais gerais e na autonomia das partes.

Direito bancário institucional é privado: nasceu como direito público e ainda hoje postula poderes dele derivados (supervisão ou fiscalização por poderes públicos). Todavia, o tecido bancário repousa em instituições que, por lei, devem assumir o tipo de sociedade anónima. Compreende também diversos deveres genéricos estruturalmente privados (competência técnica, dever de informação e dever de segredo – arts. 73.º, 75.º, 78.º a 84.º RGIC).

O direito privado é subsidiariamente aplicável nas áreas públicas. No campo bancário, esse fenómeno surge mais flagrante, podendo falar-se numa aplicação direta – veja-se o art. 64.º, n.º 1 da LOBP.

2) Direito funcional específico
O direito bancário não é valorativamente neutro. Este acompanha a lógica do dinheiro e da sua circulação. Os seus vetores e as suas soluções empenham-se na salvaguarda do valor da moeda e dos créditos a ela relativos, bem como no fenómeno do lucro.

Funcionalização de um sector é quando, além do pano de fundo civil, ocorram valores sectoriais prosseguidos pelo ramo normativo visado. No campo do direito bancário tal é evidente:
          - art. 105.º TCE: objetivo primordial do SEBC é a manutenção da estabilidade dos preços;
          - art. 101.º CRP: o sistema visa garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social;
          - art. 12.º, al. c) LOBP: compete ao Banco de Portugal velar pela estabilidade do sistema financeiro.

Estamos perante um sistema que vê atribuído a tarefa de assegurar um sistema financeiro estável, em economia de mercado.

3) Direito técnico
O Direito bancário pode ser apresentado como direito técnico. A expressão tem alguma ambiguidade – poderia exprimir uma de duas ideias:
          - a de que o estudo e aplicação implicariam conhecimentos de técnica bancária;
          - a de que o direito bancário exige um estudo especializado.

Tal ideia é redutora, pois uma aplicação sábia implica o conhecimento da realidade subjacente.

4) Direito fragmentário e dependência científica
O Direito bancário tem natureza fragmentária, embora encontremos alguns institutos que dispõem de regimes bastante completos, como o regime do Banco de Portugal.
Para além disso, recorre-se a institutos civis ou comerciais preexistentes, cuja regulação acolhe na íntegra, introduzindo depois algumas especificidades.

  • Fontes de Direito Bancário

1) A Constituição e a Lei Orgânica do Banco de Portugal
A nível infraconstitucional temos a LOBP (Lei n.º 5/98, de 31 de Janeiro).A Constituição contém, ainda, outras regras importantes para o sector bancário, como as que consagram o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1), base do segredo bancário, o direito de acesso aos tribunais (art. 20.º, n.º 1) e os princípios fundamentais da Administração Pública – legalidade, igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé (art. 266, n.º 2).Na própria Constituição encontramos regras básicas de Direito bancário [institucional] (arts. 101.º e 102.º CRP), as quais se encontram viradas para a captação e para a segurança dos depósitos dos particulares e para a sua aplicação produtiva.

2) Código Comercial e legislação extravagante
O Direito bancário material dispõe de uma fonte unitária, mesmo incompleta: o Direito da atividade bancária, designadamente no tocante às relações entre o banqueiro e o seu cliente, deve ser reconstruído com recurso a uma multiplicidade de fontes. Desde logo, cumpre referir o Código Comercial de 1888, no seu título IX, livro II (contratos especiais de comércio) com quatro arts: 362.º a 365.º.
O Código Comercial incluíra ainda, no seu título VI (das letras, livranças e cheques – arts. 278.º a 343.º), a matéria atinente aos títulos de crédito. Temos ainda uma série de leis extravagantes referentes a atos bancários.

3) Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras
Como diploma nuclear (principalmente no campo institucional) surge o RGICeSF (DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro). Temos ainda uma série de legislação diversa no campo das instituições de crédito e das sociedades financeiras.

4) Usos bancários; as cláusulas contratuais gerais
Cabe aqui papel importante como fonte mediata. Os atos bancários assentam na autonomia privada. Não é contudo imaginável que, aquando da prática de cada ato bancário, se proceda a uma atividade criativa. Daqui resulta uma prática reiterada, ou seja, um uso.
Os usos bancários podem ser juridificados por uma de três vias:
               - autonomia privada – aqui remete-se diretamente para os usos, sendo estes positivados pela vontade das partes. Muitas vezes ocorre através da «codificação», em cláusulas contratuais gerais, de práticas bancárias consagradas.
               - pela lei, referimos o art. 3.º, n.º 1 CC no Direito civil e no art. 407.º do CCom. O depósito bancário surge, muitas vezes, integrado em séries negociais complexas, que incluem, como exemplos, abertura de conta, concessão de créditos, entre outros. Podemos admitir a vigência, ex lege, de usos que abarquem todo esse negócio complexo, via interpretação extensiva do 407.º CCom.
               - pela convicção da sua obrigatoriedade: aqui temos direito consuetudinário, embora no direito português a falta de consagração legal para o costume frusta a eficácia das normas consuetudinárias.
No campo do Direito bancário material, surgem as cláusulas contratuais gerais, que acolhem muitos usos bancários dando-lhe jurisdicidade.

5) Códigos de conduta e fontes privadas
Trata-se de regras estabelecidas, por aviso, pelo Banco de Portugal, nos termos do art. 17.º LOBP e do art. 77.º, n.º 1 RGIC (códigos de conduta).
As regras gerais e abstratas aprovadas pelo Banco de Portugal são leis em sentido material cuja positividade deriva das normas que instruam o poder regulamentar do Banco de Portugal. Estas regras não podem, sob pena de ilegalidade, ser contrárias às leis fixadas por órgãos de soberania, não se aplicam a entidades que não estejam sujeitas à supervisão do Banco de Portugal e não podem transcender o âmbito da sua supervisão.
Para além disso, não podem ser constitutivas de direitos para particulares (não é possível constituir direitos para uns sem se onerar outros). Porém, a violação das regras aprovadas pelo Banco de Portugal, designadamente por parte dum banqueiro, quando provoque danos num particular, dá azo a um dever de indemnizar, por via da 2.ª parte do art. 483.º, n.º 1 CC – a violação de regras aprovadas pelo Banco de Portugal é a violação de regras que visam a proteção de interesses alheios, garantida pelos poderes de autoridade do Banco de Portugal.
O art. 77.º, n.º 2 RGIC prevê a elaboração de códigos de conduta pelas associações representativas das instituições de crédito, os quais serão submetidos à aprovação do Banco de Portugal. No âmbito estritamente associativo, compete às referidas associações aprovar regras de conduta para os seus membros, cuja jurisdicidade depende da livre adesão aos estatutos que as legitimem.

6) Diretrizes institucionais

7) Diretrizes materiais

8) Regulamentos

  • Interpretação e aplicação do Direito Bancário
Na interpretação e na aplicação do Direito bancário há que ter presente as regras gerais, tal como apuradas na atualidade pelo Direito civil.
Em traços gerais, podemos considerar que os cânones de interpretação correspondem aos fixados por Savigny no séc. XIX – letra, espírito e vontade da lei e legislador.
Para além disso, a função de realizar o direito é volitivo-cognitiva, onde acresce aos factos e à lei, temos a escolha humana do aplicador, baseada em múltiplos fatores normativos. Assim, o intérprete deve ponderar o elemento sistemático (a norma faz parte de um sistema) e teleológico (os comandos valem como instrumentos para alcançar uma ordenação de valores e de interesses).

O Direito bancário assume uma natureza funcional específica – para além do Direito comum, ele está envolvido na problemática do crédito e do dinheiro, cabendo-lhe salvaguardar os valores subjacentes. Esta dimensão poderá ter consequências interpretativas: as fontes bancárias deveriam ser interpretadas num sentido conducente à realização óptima da sua função.
Contudo, o Direito bancário apresenta áreas diferenciadas (por ex.: a contratação onde está em causa a tutela do consumidor de produtos financeiros), cabendo, por isso, ao intérprete posicionar dentro do subsistema jurídico bancário, o problema que se lhe depara.

Pergunta-se se a interpretação do Direito bancário não deveria prosseguir certos valores?
Primeiro: a tutela de investimentos dos depositantes – subjaz ao art. 101.º CRP e aos arts. 2.º, n.º 1, 4.º, n.º1, al. a), n.º 2, 5.º e 200.º RGIC.
Segundo: a transparência – desenvolvido com base na boa-fé vigente no campo das cláusulas contratuais gerais (arts. 5.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1 LCCG; art. 75.º, n.º 1 RGIC; 176.º RGES; art. 7.º a 12.º CVM que impõem que o banqueiro deveria comunicar todas as cláusulas ao seu cliente-aderente, assegurando-se de que ele as entendeu).
Terceiro: a defesa do consumidor (art. 60.º da CRP).

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