7 de março de 2017

O pedido e a causa de pedir na ação executiva

  • Pedido
       O pedido deduzido na ação executiva (cfr. art. 724.º, n.º 1, al. f) nCPC) é o efeito jurídico pretendido pelo exequente por meio dos tribunais: a realização coativa da prestação[1].
       Dada a instrumentalidade do processo, nas ações executivas o efeito jurídico pretendido corresponde, tendencialmente, à mesma situação de vantagem que adviria do cumprimento espontâneo do devedor. É esse o objeto imediato.
       E, por isso, o objeto mediato do pedido será, tendencialmente, o objeto da prestação devida, com a diferença de a mesma ser realizada coativamente. E naturalmente, o pedido apenas poderá ser exercido depois do vencimento (cfr. art. 713.º nCPC), pois antes dele não está o devedor obrigado a cumprir.
       Ainda que supra se tenha afirmado que o objeto de pedido será, tendencialmente, o objeto da prestação, com a diferença de a mesma ser realizada coativamente, nem sempre se verifica essa coincidência. Verificada a impossibilidade legal ou prática de obtenção da mesma vantagem que adviria do cumprimento espontâneo do devedor, pode o credor pretender um efeito jurídico sucedâneo, enquanto objeto imediato. Nestes casos, o pedido de cumprimento específico da prestação dá lugar a um pedido de cumprimento por equivalente, que será o pagamento de quantia pecuniária.

  • Causa de pedir
       A causa de pedir é o facto jurídico de onde decorre o efeito jurídico pretendido (pretensão). A causa de pedir são os factos jurídicos concretos de que o autor deduz o efeito jurídico, i.e., os factos jurídicos constitutivos do efeito jurídico pretendido.
       Uma vez que na execução o efeito jurídico pretendido junto do tribunal é a realização coativa da prestação, coloca-se discussão na doutrina quanto a saber de onde o autor deduz esse efeito jurídico.
       Alguma jurisprudência, Alberto dos Reis, Lopes Cardoso e Anselmo Castro defendem que a causa do pedido executivo é o título jurídico, judicial ou extrajudicial, que segundo o art. 10.º, n.º 1 nCPC, serve de fundamento à ação cumprindo a função de título executivo.
       Por sua vez, Teixeira de Sousa escreve que a causa de pedir da ação executiva é a causa debendi, sendo esta o incumprimento. Também, Lebre de Freitas escreve que “a ação executiva pressupõe o incumprimento da obrigação”.
       Rui Pinto toma posição neste ponto. Desde logo, discorda que a causa de pedir da execução não é nem o título executivo, nem o incumprimento. O título executivo é apenas um documento, i.e., a forma – legal ou voluntária – de um facto jurídico. Esse facto jurídico é o facto de aquisição pelo exequente de um direito a uma prestação. É esse facto que deve decorrer do título executivo e não o facto do incumprimento.
       Ainda que do art. 817.º CC se pareça exigir-se, além do facto aquisitivo da pretensão, o facto de não ser “a obrigação voluntariamente cumprida”, o exequente não tem de fazer constar o incumprimento do título, nem de o alegar. O que significa que caberá ao executado invocar o facto oposto do cumprimento como facto extintivo (cfr. arts. 729.º, al. g) e 731.º nCPC).
       Em conclusão, a lei exige que o credor demonstre que a obrigação é certa, líquida e exigível, mas não que uma obrigação foi incumprida (cfr. art. 713.º nCPC).
       Também na execução de títulos de crédito, a causa de pedir é o facto aquisitivo à prestação pecuniária e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito (cfr. art. 1.º LULL e art. 458.º CC). Essa constituição do direito cambiário é o saque ou a emissão do título. E, por isto, pode afirmar-se que a causa debendi não é coincidente com a causa de pedir na execução cambiária.


Tripartição objetiva

        O objeto mediato é referido pelo legislador como “o fim da execução”. Assim, lê-se no art. 10.º, n.º 6 nCPC que o “fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo”.

   v  Pagamento de quantia certa
       Se o objeto da prestação é a entrega de quantia pecuniária, em execução dessa obrigação pecuniária vale a sequência processual da execução para pagamento de quantia certa dos arts. 724.º a 898.º nCPC. Nela, o efeito jurídico pedido pelo credor é o pagamento da quantia, se necessário por via executiva, obtendo, assim, o exequente “o mesmo resultado que com a realização da prestação, que segundo o título executivo, lhe é devida”.
       Por isso, sem prejuízo de o devedor poder pagar voluntariamente, o Estado por meio do seu ius imperii pode recorrer à apreensão de bens, sem o concurso da vontade do executado (i.e., penhora), seguida da sua venda. Os meios de satisfação do interesse do credor no cumprimento estão previstos no art. 795.º, n.º 1 nCPC.
       Esta modalidade de execução aplica-se às prestações pecuniárias dos arts. 550.º e ss. CC.

   v  Entrega de coisa certa
       O princípio da patrimonialidade da execução deve ainda ser aplicado, mutatis mutandis, quando o objeto da prestação é a entrega de uma coisa. Aqui, já se trata de executar um bem que está na sua posse, mas em face da qual o credor tem um direito prevalecente.
       Nela, o efeito jurídico pedido pelo credor é a entrega da coisa na posse do executado, pois esse seria o resultado que se atingiria com o cumprimento. Tal como na penhora, o Estado apreende bens, mas para posterior entrega ao exequente que sobre eles invoca um direito.
       Vale aqui o art. 827.º CC e estando a sequência processual da execução nos arts. 859.º a 867.º nCPC.

   v  Prestação de facto
       Na execução para prestação de facto, a coisa não é o centro da execução, mas uma organização de meios por parte do devedor que o concurso da sua própria vontade pode gerar. Aqui, o princípio da patrimonialidade esgota a sua potencialidade e, ao mesmo tempo, o devedor não pode ser compelido ao cumprimento.
       Valem aqui os arts. 828.º e 829.º CC, bem como, seguindo a sequência processual os arts. 868.º a 877.º nCPC. Aqui, o credor requererá perante o executado, como efeito jurídico, a prestação por outrem, se o facto for infungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação, sendo infungível. Sendo o facto negativo pode requerer a demolição da obra.

   v  Execução específica
       Da análise feita à tripartição objetiva, conclui-se que nem sempre se dá a coincidência entre o objetivo devido da prestação e o objeto efetivo da execução.
       Quando exista essa coincidência está-se perante uma execução específica; quando não exista, trata-se de uma execução por equivalente (não específica), caso em que, dado o princípio da patrimonialidade da execução, o objeto será uma quantia certa, substitutiva da prestação.
       Assim, podem ser executadas especificamente as prestações cujo objeto é indiferente ao incumprimento:
                        ∙ a prestação de entrega de coisa certa;
                          a prestação de facto fungível por terceiro, ainda que mediata ou indireta;
                        ∙ a prestação de facto negativo, quando represtinável por via de demolição ou outro ato de reposição do estado inicial.
       Diversamente, podem ser executados não especificamente (por equivalente) as prestações cujo objeto não é indiferente ao cumprimento:
                        ∙ a prestação de facto infungível
                        ∙ a prestação de facto negativo não represtinável.

       E a prestação de entrega de quantia pecuniária?
       Para Teixeira de Sousa e Remédio Marques trata-se de uma execução não específica. Já Lebre de Freitas entende que se trata de uma forma de execução específica indireta por antes do pagamento ter de ocorrer uma apreensão e uma venda de bens para ulterior pagamento.
       Rui Pinto discorda de ambos os pontos de vista. Desde logo, porque o caráter fungível das obrigações pecuniárias impõe que o efeito pretendido pelo exequente seja o mesmo: a mesma entrega de quantia em que se consubstancia o pagamento (satisfação do crédito). E esse pagamento tanto pode ser por entrega de dinheiro em espécie, consignação de rendimentos ou por entrega do produto da venda (cfr. arts. 795.º, n.º 1, 798.º e 803.º, n.º 1 nCPC) – e, nestes casos, a execução para pagamento é específica.
       No entanto, assim não será se a satisfação for feita por meio de adjudicação dos bens penhorados, conforme os arts. 795.º, n.º 1 e 799.º nCPC. Somente nessa eventualidade, a execução para pagamento de quantia certa não é específica.



[1] A realização coativa da prestação consiste na realização de atos materiais de ingerência na esfera do devedor, dado ser contra a sua vontade.

2 de fevereiro de 2017

Princípios gerais e privativos do Direito Executivo


v  Princípios gerais
       O processo civil rege-se por vários princípios arrumados nas categorias de princípios estruturantes e princípios instrumentais: aqueles necessariamente presentes, impostos pela Constituição, estes eventualmente consagrados, dependentes do legislador ordinário.
 
            - Estruturantes
        São estruturantes ou necessários os seguintes princípios:
            ∙ princípio da igualdade das partes
Vigora em sede executiva o art. 4. nCPC que enuncia “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes”.
            ∙ princípio do contraditório
Dita que o processo executivo é um processo que se desenvolve em comparticipação entre exequente e executado[1]. Tem como exceção ou moderação a possibilidade de atos executivos – a penhora – sem audição prévia do executado nos casos previstos no art. 550.º, n.º 2 nCPC.
            ∙ princípio da legalidade da decisão
Vale tanto para os despachos do juiz da execução como para as decisões do agente de execução. Um e outro devem, em regra, decidir segundo a lei, pelo que deverão na fundamentação de direito “indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes” (art. 607.º, n.º 3 nCPC). No entanto, conhece alguns limites nos juízos de equidade.
            ∙ princípio da publicidade
Os atos do processo executivo não são secretos. Vale a regra geral do art. 163.º, n.º 1 nCPC de que o “processo civil é público, salvas as restrições previstas na lei”. Visto o processo ser essencialmente eletrónico (cfr. art. 712.º nCPC), a publicidade assegura ao interessado que possa consultar informaticamente o processo. No entanto, paradoxalmente, nos anos recentes, a existência de dois sistemas eletrónicos – o CITIUS do Estado e o SISAAE dos Agentes de Execução – leva a que os atos processuais se achem divididos em dois.
            ∙ princípio da prevalência funcional
Cada ato é devido ou admissível se apresentar-se justificado para a finalidade executiva, sob pena de inutilidade, nos termos do art. 132.º nCPC. Além disso, o ato terá a forma mais adequada à função, conforme o art. 131.º nCPC. É este princípio que fundamenta que possa dar-se a ocorrência de penhora antes da citação do demandado e da forma sumária dos arts. 550.º, n.º 2 e 856.º, n.º 1 nCPC. Trata-se de um típico fenómeno de sumarização do procedimento, i.e., de restrição razoável e proporcional às garantias processuais em favor da celeridade necessária à eficácia concreta do processo.

          - Instrumentais
         São instrumentais ou eventuais:
            ∙ princípio do dispositivo
O processo civil é um processo assente na disponibilidade das partes sobre a instância. Cabe ao credor dar o impulso processual pelo requerimento executivo (cfr. art. 724.º nCPC).
            ∙ princípio da oficialidade
Ao se exercerem na ação executiva poderes de autoridade do Estado, ela apresenta-se com fortes traços de oficialidade, pois incumbe ao agente de execução praticar, sem necessidade de requerimento de parte, os atos necessários à execução que sejam da sua competência, como a citação, a penhora, a venda e o pagamento (cfr. arts. 719.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1 nCPC, por interpretação extensiva).
            ∙ princípio do inquisitório e da oficiosidade
A execução é ainda um processo fortemente sujeito ao princípio da legalidade ou pré-determinação legal do procedimento. Na verdade, não podem as partes determinar a sequência processual executiva, pois essa é ditada pelo título executivo, e o juiz apenas o pode no uso do princípio da adequação formal, de expressão prática muito reduzida (cfr. art. 547.º nCPC).
Além disso, as partes não podem apresentar títulos executivos que não sejam os previstos no art. 703.º nCPC ou com menos requisitos que os exigidos.
            ∙ princípio da cooperação
O princípio geral da cooperação entre partes e tribunal (cfr. art. 7.º nCPC), traduz-se num dever de litigância de boa fé do art. 8.º nCPC, cuja violação pode levar a responsabilidade civil por litigância de má fé (cfr. art. 542.º nCPC). Não somente rege o regime comum da litigância de má fé como, ainda, estão previstos regimes cominatórios específicos por litigância de má fé[2].
Ainda o mesmo princípio de cooperação impõe ao tribunal um dever de prevenção corporizado no despacho de aperfeiçoamento nos termos do art. 726.º, n.º 4 nCPC, ao agente de execução o dever de informar o exequente de todas as diligências efetuadas, assim como do motivo da frustração da penhora (cfr. art. 754.º, n.º 1, al. a), nCPC) e ao executado ou terceiro o dever de apresentação da coisa penhorada, sob pena de litigância de má fé e responsabilidade criminal (art. 767.º, n.º 2 nCPC).
            ∙ princípio da preclusão e auto-responsabilidade das partes
Por ser um processo sujeito ao princípio dispositivo, as partes têm o ónus de realizar os atos processuais num certo momento do processo e num certo prazo sob pena de caducidade ou preclusão, respetivamente.
            ∙ princípio da legalidade das formas.

v  Princípios privativos
Podem isolar-se princípios privativos à ação executiva?
Teixeira de Sousa aponta-lhe “características essenciais”; além da especialização, fala na formalização: a execução corre baseada num único documento, que é o título executivo (cfr. art. 10.º, n.º 5 nCPC). Aponta ainda a coação: ao ser um momento de exercício do ius imperii, podem ser impostas medidas de coação ao executado e aos terceiros que não colaborem com a realização coativa da prestação[3].
Alguns autores assinalam como identitário da ação executiva o que designam como favor creditoris: a execução seria um processo sem igualdade material de fundo entre credor exequente e devedor executado, prevalecendo a posição daquele sobre a deste.
Este favor creditoris decorre do próprio postulado intrínseco da execução: a parte ativa, não pretende ter um direito, mas exerce já um direito, demonstrado no título executivo. Neste sentido, a execução é do e para o credor.
Em todo o caso, o favorecimento material da parte ativa não é exclusivo da execução: também no processo declarativo a simples circunstância de o autor poder escolher o tempo, termos e objeto da ação o favorecem.
Um outro “princípio” é o da patrimonialidade da execução: o objeto dos atos executivos são sempre situações jurídicas ativas patrimoniais no domínio do devedor, ou coisa corpórea ou prestações de facto[4]. A patrimonialidade é o princípio enunciado no art. 817.º CC e nos arts. 827.º a 829.º CC.
Finalmente, ainda que seja patrimonial no seu objeto, a execução deve ser, no seu âmbito, proporcional.
A execução traduz-se essencialmente numa restrição à posse sobre a coisa ou ao exercício de direitos privados e, mesmo, em ineficácia de atos dispositivos. Por isso, os atos executivos de penhora e de apreensão de coisas e os ulteriores atos de venda ou de entrega apenas devem ser os estritamente adequados a satisfazer a pretensão do autor e as acessórias pretensões de custas (cfr. art.s 735.º, n.º 3, 813.º, n.º 1 e 751.º, n.º 2 nCPC).
Estamos perante características isoladas das normas ou perante verdadeiros princípios?
Um princípio apresentar um valor normativo diretivo que permita resolver dúvidas interpretativas e lacunas de normas concretas. Ou seja, na dúvida normativa devem prevalecer os valores legislativos ou rationes ínsitos ao princípio.
O favor creditoris, a proporcionalidade e a patrimonialidade são, assim, princípios. Também a formalização, entendida como dependência da execução da existência e eficácia de um documento – o título executivo – de modo que os seus limites e objeto se medem por este, é um princípio.
A coação é comum a várias normas concretas mas não é um princípio. O seu caráter gravoso e de ius imperii não permite expansões normativas para além das soluções positivadas.
Enfim, a especialização é comum a qualquer ação, em face do caráter comum dos arts. 130.º e 131.º nCPC e é uma faceta do princípio da prevalência funcional, não sendo aliás absoluta.


[1] Assim, ao requerimento executivo do exequente (cfr. art. 724.º nCPC) pode o executado opor a sua defesa por meio de oposição à execução (cfr. art. 728.º nCPC).
[2] É o caso do disposto no art. 750.º, n.º 1, segunda parte, nCPC: o executado tem o dever jurídico-processual de indicar bens à penhora quando notificado para isso, sob pena de cominação (sanção pecuniária compulsória por omissão de indicação de bens à penhora, posteriormente descobertos). O mesmo sucede no art. 858.º nCPC relativamente ao exequente.
[3] Essas medidas são muito diversas: multas, indemnização, execução de quantias não depositadas, sanção pecuniária compulsória, arresto de bens.
[4] Os bens de personalidade, como a integridade física e a liberdade não são objeto da ingerência executiva.


31 de janeiro de 2017

Contrato a favor de terceiro


"Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de proteção legal, a obrigação de efetuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente o contraente a quem a promessa é feita.

Art. 443.º, n.º 1 CC



       Neste contrato, uma das partes (o promitente) assume, perante a outra (promissário), uma obrigação de prestar a uma pessoa estranha ao negócio (o terceiro), a qual adquire um direito à prestação. Este tipo de contrato faz nascer automaticamente um direito para o terceiro, o qual se constitui independentemente da aceitação deste (art. 444.º, n.º 1 CC), sendo nessa medida uma exceção ao regime da ineficácia dos contratos em relação a terceiros (art. 406.º, n.º 2 CC). A lei seguiu aqui a dominante teoria do incremento, nos termos da qual a aquisição do terceiro verifica-se imediatamente em virtude do contrato celebrado entre o promitente e o promissário, dispensando-se qualquer outra declaração negocial para esse efeito. Foram, assim, rejeitadas a teoria da aceitação que entendia que a aquisição do terceiro só se processava quando ele manifestava a sua concordância ao promissário e a teoria da cessão que considerava que a aquisição do terceiro como uma aquisição derivada a partir do promissário, que apareceria como aquirente primário do direito.



       § 1.º Âmbito

       O contrato a favor de terceiro tem aplicações significativas na área dos seguros (por ex.: na área dos seguros), no domínio dos transportes (ex.: o transportador obriga-se perante o expedidor a providenciar a deslocação de pessoas ou de bens de um local para outro), no caso das doações com encargos (ex.: alguém doa determinados bens com o encargo, para o destinatário, de pagar uma pensão a um terceiro), no campo das garantias (ex.: o promitente obriga-se, perante o promissário, a garantir uma dívida de terceiro, o que pode consistir numa hipoteca, num penhor ou numa garantia pessoal), ou no campo parassocial.



       O contrato a favor de terceiro permite às partes alcançar os seguintes efeitos, patentes no art. 443.º, n.º 2 CC:

       · remissivos de dívidas;

       · transmissivos de dívidas;

       ·constitutivos, modificativos, transmissivos ou extintivos de direitos reais.



       Da celebração deste contrato, surgem três relações jurídicas:

       · uma relação básica ou de cobertura entre as partes no contrato (promitente e promissário) – em que se estabelecem as posições relativas do promitente e do promissário, as prestações que devem ser trocadas entre as partes, bem como o seu regime, e a prestação que o promitente deva fazer ao terceiro;

       · uma relação de atribuição ou de valuta entre o promitente e o terceiro – onde se fixa o direito do terceiro à prestação e quaisquer condicionalismos que a rodeiem, e onde o terceiro adquire o direito à prestação independentemente de ter dado o seu acordo (art. 444.º, n.º 1 CC). Atenção que a relação de atribuição depende da perfeição da relação básica (art. 449.º CC);

       · uma relação de execução entre o promissário e o terceiro



       § 2.º Regime geral

       * Posição do promissário

       O promissário é a pessoa perante a qual o promitente assume a obrigação de prestar a terceiro. Contudo, é necessário que tenha, na promessa, um interesse digno de proteção legal, como determina o art. 443.º, n.º 1 CC. Mas esse interesse não tem de ser patrimonial e a relação básica deve ter juridicidade; quer isto dizer que, excluindo-se as situações de pura obsequiosidade, os contratos a favor de terceiro são possíveis e válidos, ao abrigo da autonomia privada (ex.: admite-se, inclusive, interesses estéticos, inconfessáveis, desde que não haja ilegalidade ou atentado aos bons costumes).



       O promissário tem as seguintes pretensões:

       · pode exigir ao promitente o cumprimento da sua obrigação (art. 444.º, n.º 2 CC), o que se entende por ter sido ele a acordar com o promitente a realização da prestação a terceiro e possuir interesse jurídico no seu cumprimento;

       · pode exigir ao promitente a exoneração do promissário de uma dívida perante o terceiro, quando esse seja o conteúdo da promessa;

       · pode exigir ao promitente as prestações ou outras vantagens que lhe possam advir da relação básica (art. 405.º CC);

       · pode dispor do direito à prestação ao terceiro ou de autorizar a sua modificação enquanto a adesão não for manifestada (arts. 446.º, n.º 1 a contrario e 448.º, n.º 1, 1.ª parte CC).



       A lei procura ainda resolver o problema das relações entre o promissário e pessoas estranhas ao negócio (art. 451.º, n.º 1 CC), designadamente para os casos em que a diminuição do património do promissário, gerada pela sua atribuição ao terceiro, não seja legalmente permitida e deva, por isso, ser revertida, como acontece nas hipóteses de colação, imputação ou redução das doações ou impugnação pauliana. Nesses casos, a interposição da prestação do promitente poderia colocar em dúvida qual o valor que se deveria tomar em conta para efeitos dessa restituição: a diminuição patrimonial por parte do promissário ou a efetiva aquisição por parte do terceiro. A lei vem esclarecer que apenas o primeiro desses valores é tomado em consideração para efeitos de aplicação destes institutos. No caso de se verificar a revogação por ingratidão do donatário, é o próprio bem recebido pelo terceiro ou o seu valor, que deve ser objeto de restituição ao promissário (arts. 451.º, n.º 2 e 974.º CC).



       * Posição do promitente

       O promitente tem, fundamentalmente, o dever de prestar ao terceiro beneficiário. Ele assume, pelo contrato, a correspondente prestação (art. 443.º, n.º 1 CC), que lhe pode ser exigida tanto pelo terceiro (art. 444.º, n.º 1 CC) como pelo promissário, se outra não tiver sido a vontade dos contraentes (art. 444.º, n.º 2 CC).

       Caso o promitente não cumpra com o seu dever de prestação principal, a “promessa”, ele pode ser interpelado para cumprir, quando não haja um prazo fixado (art. 777.º, n.º 1 CC), ou ser-lhe feita uma interpelação moratória, se na data aprazada não cumprir (art. 805.º, n.º 1 CC). Seguidamente, se após a interpelação, o promitente continuar a não cumprir, então pode ser-lhe intentada uma interpelação admonitória (art. 808.º, n.º 1 CC), sob pena de haver resolução por incumprimento definitivo, caso não seja respeitado esse prazo admonitório ou o credor perca o interesse na prestação (art. 808.º CC). Pode ainda haver resolução por impossibilidade culposa, nos termos do art. 801.º, n.º 2 CC. Ao invés das interpelações, podem ainda serem intentadas medidas relativas à realização coativa da prestação (art. 817.º a 830.º CC).

       A serem tomadas, estas medidas podem ser intentadas quer pelo promissário, quer pelo terceiro porque ambos são credores do promitente. O promissário porque exerce uma posição própria, mas no interesse do terceiro, salvo quanto a prestações que tenha diretamente direito; e o terceiro porque ao aderir à promessa, adquire uma posição de confiança que deve ser respeitada.



       Contudo, as pretensões que o promitente deve realizar dependem de ter havido, ou não, adesão do terceiro beneficiário. Ora:

       · não havendo adesão, os contraentes podem revogar a promessa (art. 448.º, n.º 1 CC) ou modificá-la (art. 446.º, n.º 1 CC) e, como tal, por maioria de razão, cabe ao promissário concretizar, como entender, o conteúdo potestativo da sua posição;

       · havendo adesão, o terceiro beneficiário consolida a sua posição, podendo exercer as pretensões do credor e passando, a partir daí, a prevalecer sobre o próprio promissário; no entanto, se a “promessa” consistir em exonerar o promissário de uma dívida para com o terceiro (art. 444.º, n.º 3 CC), pode haver uma inversão do regime porque a remissão é contratual (art. 863.º, n.º 1 CC) e o beneficiário é o próprio promissário.



       * Posição do terceiro

       O terceiro é quem adquire, pelo contrato a seu favor, imediatamente, o direito à prestação, independentemente de aceitação. Ou seja, ele não se limita a ser apenas o recetor material da prestação, possuindo face ao promitente um direito de crédito a essa mesma prestação.

       O facto de tanto o terceiro como o promissário poderem exigir do promitente o cumprimento suscitou alguma discussão na doutrina. Para Leite de Campos, estaríamos perante um fenómeno de concorrência funcional entre dois créditos, um próprio do terceiro, e outro do promissário, coadjuvante deste. Já Menezes Leitão segue Teixeira de Sousa, considerando que existe aqui apenas uma única posição jurídica objetiva que permite a aquisição da prestação, que é o direito de crédito de terceiro, independentemente da vinculação subjetiva do promitente ocorrer tanto em relação ao terceiro como ao promissário.

       O terceiro pode, nos termos do art. 447.º, n.º 1 CC:

       · rejeitar (em homenagem ao princípio invito beneficium non datur) mediante declaração ao promitente, devendo este, depois, comunicar ao promissário. Se o promitente faltar culposamente à comunicação, irá ter de responder perante o promissário (art. 447.º, n.º 2 CC); ou

       · aderir mediante declaração ao promitente e ao promissário (art. 447.º, n.º 3 CC); ou

       · nada fazer.

       Ambas as declarações podem ocorrer tacitamente, segundo as regras gerais (art. 217.º CC).



       Havendo rejeição, o direito do terceiro à prestação extingue-se. O que sucede ao dever de prestar, a cargo do promitente? Apesar do silêncio do Código Civil, pela interpretação do contrato concluímos que, à partida, a rejeição do terceiro não exonera o promitente da sua prestação principal, uma vez que ela foi assumida perante o promissário. Como tal, essa prestação passa a caber ao promissário, i.e., o promitente tem agora que prestar ao promissário, exceto se outra coisa resultar da vontade das partes ou da natureza do contrato.

       Por sua vez, havendo adesão, a promessa torna-se irrevogável (art. 448.º, n.º 1 a contrario CC) e firme (art. 446.º, n.º 1 a contrario e a fortiori CC) não podendo haver disposição nem modificação do seu objeto. A adesão não traduz um ingresso do terceiro no contrato nem se destina a permitir ao terceiro a aquisição do direito, uma vez que este é adquirido logo com a celebração do contrato. A sua função é a de consolidar um contrato que, por não ter sido celebrado com o terceiro é, antes dela, instável pois pode, até lá, haver a revogação da promessa.

       Contudo, ainda assim, quando o terceiro manifesta a sua adesão, a promessa pode ainda ser revogada no caso da mesma só dever ser cumprida após a morte do promissário (art. 448.º, n.º 1 CC), ou, se se tratar de uma liberalidade, se se verificarem os pressupostos da revogação por ingratidão do donatário (arts. 450.º, n.º 2 e 970.º CC).



       § 3.º Regimes especiais

       * A promessa de liberação de dívida como falso contrato a favor de terceiro

       É feita uma distinção entre os verdadeiros contratos a favor de terceiro (arts. 443.º e 444.º, nºs 1 e 2 CC) e os falsos contratos a favor de terceiro ou contrato impróprio, de que seria exemplo a promessa de liberação (art. 444.º, n.º 3 CC).

       Estamos, neste caso, perante uma situação em que o promitente e o promissário acordam numa obrigação de resultado: a de que o promitente obterá a extinção de uma dívida que o promissário tenha para com o terceiro.

       Embora o promitente não assuma uma obrigação perante o terceiro, para obter o resultado dessa liberação do promissário, naturalmente que terá que efetuar uma prestação a esse terceiro. Só que essa prestação é meramente instrumental em relação à obrigação do promitente, que é antes a de obter a liberação do promissário. Assim, considera-se que só o promissário tem interesse na promessa. Daí que, qualquer lei considere que as partes não visaram atribuir ao terceiro qualquer direito de crédito, mas apenas proceder à exoneração do promissário, pelo que só o promissário poderá exigir do promitente o cumprimento da promessa.



       * As promessas em benefício de pessoas indeterminadas ou no interesse público

       Uma outra situação consiste na hipótese de a designação do beneficiário da prestação se referir a um conjunto indeterminado de pessoas ou de corresponder mesmo a um interesse público. A especialidade desta hipótese é que temos uma legitimidade difusa para a exigência da prestação e, como tal, o art. 445.º CC permite que tanto o promissário como os seus herdeiros possam reclamar o cumprimento da prestação e confere legitimidade às entidades competentes para defender os interesses em jogo.

       Antes de haver a adesão do terceiro, o contrato é revogável, mas apenas enquanto o promissário for vivo (art. 448.º, n.º 1 CC). Por seu lado, tanto os herdeiros do promissário como as autoridades competentes não podem dispor do direito à prestação nem autorizar qualquer modificação no seu objeto (art. 446.º, n.º 1 CC). Não possuem, como sucede com o terceiro, um direito de crédito à prestação do promitente, mas apenas, à semelhança do que sucede em geral com o promissário (art. 444.º, n.º 2 CC), um mero direito de reclamar a prestação do promitente para o fim estabelecido.

       A haver revogação, esta cabe ao promissário, salvo quando a promessa for feita no interesse de ambos os outorgantes, caso em que depende do consentimento do promitente (art. 448.º, n.º 2 CC). Ora, temos de ter presente a natureza contratual da remissão (art. 863.º, n.º 1 CC), pelo que, a regra será a do mútuo interesse em qualquer contrato – a revogação pressuporá, em regra, o mútuo acordo do promitente e promissário (art. 448.º, n.º 2, 2.ª parte CC).



       * A promessa a cumprir depois da morte do promissário

       A promessa a cumprir depois da morte do promissário é uma exceção ao regime do art. 444.º, n.º 1 CC, uma vez que o terceiro não pode exigir o cumprimento da promessa antes da verificação da morte do promissário. É duvidoso se, neste caso, as partes pretendem atribuir ao terceiro de imediato um direito de crédito sobre o promitente, pois ele apenas se vencerá no momento da morte do promissário, ou se pretendem que o direito de crédito apenas se constitua após a morte do promissário, beneficiando, até lá, o terceiro de apenas uma expectativa jurídica. Teoricamente, a diferença entre as duas soluções é a de que na primeira, caso o terceiro morra antes do promissário, os seus herdeiros sucedem no seu direito sobre o promitente; e no segundo caso, essa sucessão já não se verifica uma vez que o terceiro quando morreu não era titular de qualquer direito que pudesse transmitir aos seus herdeiros.

       Numa posição entre as duas soluções, a lei vem presumir que a estipulação das partes é no sentido de que o terceiro só adquire o direito com a morte do promissário (art. 451.º, n.º 1 CC), mas que, se aquele falecer antes deste, os seus herdeiros são chamados no lugar dele à titularidade da promessa (art. 451.º, n.º 2 CC). A aparente contradição deve ser resolvida através da sua adequada interpretação. É manifesto que se o terceiro não adquire qualquer direito antes da morte do promissário, a aquisição dos herdeiros resulta do próprio contrato a favor de terceiro. O que a lei estabelece são duas regras imperativas: a de que o direito só é atribuído com a morte do promissário, e a de que o promissário designa subsidiariamente como beneficiários os herdeiros do terceiro, no caso deste falecer antes de adquirir esse direito. Qualquer uma destas presunções é ilidível (art. 350.º, n.º 2 CC), através da estipulação de que a celebração do contrato faz adquirir imediatamente o direito, ou através da estipulação de que só o terceiro poderá beneficiar da promessa.

       Outra característica é o facto de a promessa ser sempre revogável enquanto o promissário for vivo, independentemente da aceitação do terceiro (art. 448.º, n.º 1 CC), o que, saliente-se, sucede que o direito já tenha sido adquirido pelo terceiro, quer a aquisição se verifique após a sua morte. A revogação pode ser expressa ou tácita, como sucederá na hipótese de o promissário resolver designar ao promitente outro beneficiário da promessa.



       § 4.º Especificidades

       * Os meios de defesa oponíveis pelo promitente – art. 449.º CC

       Como a posição do terceiro beneficiário está confinada ao que resulte do contrato, o promitente pode opor-lhe os meios de defesa que resultem desse mesmo contrato (por ex.: fundamentos de nulidade ou de anulação, exceção de não cumprimento ou alteração das circunstâncias), mas já não pode usar dos meios que lhe advenham da relação que tenha com o promissário (ex: a que conduza a uma compensação).



       * O papel dos deveres acessórios

       O contrato a favor de terceiro apresenta muitas fragilidades, como por exemplo:

       · o promitente, quando se desempenhe perante o terceiro, não tem, sobre si, a fiscalização da contraparte, o que o pode fazer menos diligente ou até falsificar a conduta a que se encontra adstrito;

       · o promissário, por não ser o destinatário da prestação acordada, pode desinteressar-se dela ou não dispor dos elementos necessários para se assegurar a sua integralidade;

       · o terceiro, não sendo parte no contrato, desconhece os precisos termos envolvidos ficando em inferioridade no momento do cumprimento.

       E estas fragilidades devem ser ultrapassadas através de adequados deveres acessórios, impostos pelo sistema, através da regra da boa fé (art. 762.º, n.º 2 CC). As duas partes e o terceiro ficam envolvidos em deveres de segurança, de lealdade e de informação, daí que: o terceiro deve receber a efetiva prestação acordada; o promitente não pode desencantar o promissário; e o promissário não deve piorar a posição do promitente.

30 de janeiro de 2017

Contrato para pessoa a nomear


Ao celebrar o contrato, pode uma das partes reservar o direito de nomear um terceiro que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes do contrato.

Art. 452.º, n.º 1 CC



       O contrato para pessoa a nomear é o contrato celebrado entre duas partes, em que uma delas tem a faculdade de designar um terceiro para ocupar o seu lugar, adquirindo os direitos e assumindo as obrigações resultantes desse contrato. É um caso em que se admite uma dissociação subjetiva entre a pessoa que celebra o contrato e aquela onde se vai repercutir os respetivos efeitos jurídicos. Dá-se um fenómeno de substituição entre o outorgante originário e o nomeado.



       § 1.º Regime geral

       A cláusula para pessoa a nomear pode constar do próprio contrato, exceto se o contrato não previr tal cláusula (art. 452.º, n.º 2 CC) ou de um texto à parte ou subsequente, caso em que terá de revestir a forma exigida para o contrato em si (art. 221.º, n. 2 CC), por procederem as mesmas razões justificativas, e por força da regra incontornável do art. 262.º, n.º 2 CC.

       Para que haja a conclusão do contrato com cláusula para pessoa a nomear, tem de existir, antes de mais, a concordância do amicus (terceiro), isto porque pelas regras gerais do Direito privado de que ninguém pode encabeçar um contrato que não queira e por força do art. 453.º, n.º 2 CC.

       Após a sua concordância, deve ser feita a electio (escolha ou nomeação) do terceiro para ocupar o lugar definitivo no contrato. Para poder produzir os seus efeitos, a nomeação deverá observar determinados requisitos legais. Assim, deve ser feita por escrito ao outro contraente no prazo convencionado, ou na falta de convenção, dentro de 5 dias, a contar da data de celebração do contrato (art. 453.º, n.º 1 CC), e deve ser acompanhada, para ser eficaz, de instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste (art. 453.º, n.º 2 CC). Se o contrato não indicar outro prazo e mesmo que haja procuração anterior, a nomeação deve ser feita no prazo de 5 dias, sob pena do contrato produzir efeitos perante os contratantes iniciais. Já se se tratar de um contrato-promessa, e de nele se exarar que o definitivo será concluído com o promitente em causa ou com quem ele indicar, a electio já poderá ocorrer, apenas, na celebração do definitivo.

       A nomeação tem como requisito necessário uma atribuição de poderes representativos por parte do nomeado, por forma a garantir a sua vinculação ao contrato, exigindo a lei para o efeito procuração ou ratificação, consoante essa atribuição de poderes representativos ocorra antes ou após a celebração do contrato para pessoa a nomear. Sendo exigida a ratificação, esta deve ser outorgada por escrito (art. 454.º, n.º 1 CC) ou revestir a forma do contrato celebrado, quando este tenha sido celebrado por documento com maior força probatória (art. 454.º, n.º 2 CC).





       Feita a designação e a sua comunicação, o amicus electus (pessoa nomeada) adquire os direitos e assume as obrigações provenientes do contrato concluído a partir da celebração (art. 455.º, n.º 1 CC); ou seja, a nomeação tem, assim, eficácia retroativa. Contudo, se a nomeação não for feita nos termos legais, o negócio consolida-se na esfera do contraente originário (art. 455.º, n.º 2 CC), exceto se as partes acordarem que, em caso algum, o contrato virá a produzir efeitos em relação ao contraente originário. Nessa hipótese, a não verificação da nomeação acarretará a ineficácia do contrato.

       Por fim, o contrato está ainda sujeito a registo (art. 456.º CC), o que não é obstáculo à possibilidade da cláusula para pessoa a nomear apenas ser feita após a conclusão do contrato; nessa hipótese, a introdução dessa cláusula faz-se em nome do contraente originário, com indicação de cláusula para pessoa a nomear, e registando-se a mesma por averbamento a posterior nomeação de terceiro ou ausência dela (arts. 456.º CC e art. 94.º, al. b) do Código Registo Predial).



       § 2.º Natureza jurídica

       A natureza do contrato para pessoa a nomear é controversa na doutrina. Para alguma doutrina existiria um fenómeno de representação anónima. Para outros, tratar-se-ia de um contrato a favor de terceiro. A maioria da doutrina considera-o como um contrato celebrado simultaneamente em nome próprio e em nome alheio, sendo a sua celebração em nome próprio sujeita a uma condição resolutiva, e a sua celebração em nome alheio sujeita a uma condição suspensiva.

     Para Menezes Leitão esta última posição é preferível. A qualificação como representação anónima é duplamente incorreta, em primeiro lugar porque é essencial à representação a existência da conteplatio domini (art. 258.º CC) e, em segundo lugar, porque os efeitos do negócio podem acabar por se repercutir exclusivamente no contraente originário, o que nunca acontece com o representante, mesmo que este atue sem poderes (art. 268.º, n.º 1 CC).

       Enquanto que no contrato a favor de terceiro, o terceiro não é parte no contrato, no contrato para pessoa a nomear vem a sê-lo se a nomeação for efetuada eficazmente (art. 455.º CC).

5 de setembro de 2016

Detenção

Na esteira de Pinto de Albuquerque, a detenção distingue-se da prisão preventiva, na medida em que enquanto esta resulta de decisão judicial interlocutória, aquela resulta de ato de autoridade judiciária, OPC, entidade policial, pessoa comum e deve observar os prazos do art. 254.º CPP, designadamente, 48h para processo sumário, primeiro interrogatório judicial e aplicação de medida de coação, só podendo ser suspensa por estado de sítio (arts. 28.º, n.º 1 e 19.º, n.º 6 CRP), onde não pode ultrapassar 7 dias, ou 24h no caso de apresentação para ato processual perante autoridade judiciária.
Quanto à tempestividade da apresentação do detido ao juiz para primeiro interrogatório judicial, v. art. 141.º CPP.
   › Pinto de Albuquerque: não é inconstitucional a interpretação dos arts. 141.º, n.º 1 e 254.º, al. a) CPP, nos termos do qual o interrogatório se iniciou dentro das 48h, mas a validação judicial foi só 72h depois.

  • Direitos do detido
O detido tem direito a conhecer os motivos da detenção, i.e., os factos concretos que a motivaram, as incriminações que lhe correspondem e as circunstâncias que legalmente fundamentam a detenção (art. 27.º, n.º 4 CRP e 258.º, n.º 1, al. c) CPP), bem como o direito a impugnar os motivos da detenção, comunicar imediatamente com advogado (arts. 260.º e 143.º, n.º 4 CPP), ser constituído arguido (art. 58.º, n.º 1, al. c) CPP) e conhecer os seus direitos (art. 27.º, n.º 4 CRP).
Na esteira do TEDH, o detido não tem direito a ser algemado.

  • Detenção em flagrante delito
Vem prevista nos arts. 255.º e 256.º CPP e tem 3 modalidades:
   ∙ em sentido próprio – o flagrante delito ocorre em qualquer fase de cometimento do crime (atos preparatórios puníveis, prática de atos de execução puníveis, momento da consumação);
   ∙ quase flagrante delito – caso do smokin’ gun;
   ∙ presunção do art. 256.º, n.º 2 – ‘logo após o crime’ e ‘sinais que mostrem claramente’.

NOTA: Em relação aos crimes permanentes, só há flagrante delito enquanto se mantiverem sinais claros de que o crime está a ser cometido; quanto ao crime continuado não há flagrante delito entre as ações; e, no crime habitual não há qualquer especialidade.

Cumpre ainda prestar atenção à matéria referente à detenção fora de flagrante delito e situações onde poderá ocorrer (art. 257.º CPP), aos requisitos do mandado de detenção (art. 258.º CPP), à comunicação da detenção do OPC ao MP (art. 259.º CPP) e à libertação imediata (art. 260.º CPP).

  • Habeas corpus
A providência do habeas corpus é um modo de impugnação de detenções ilegais. Ora, não apenas o juiz pode ordenar detenções, como também o MP, os OPC e até particulares. O recurso é o modo normal de impugnação apenas das decisões judiciais e tem uma certa demora no seu processamento. Assim, a finalidade da providência do habeas corpus é que se cumpra num espaço de tempo muito curto a finalidade da detenção – a apresentação do detido ao juiz para que, cumprida a finalidade da detenção, seja posto cobro à situação de privação ilegal de liberdade.

O fundamento para a providência é a detenção ilegal (art. 31.º CRP), apesar de que não é qualquer ilegalidade da detenção que pode fundamentar a providência, mas só as indicadas nas als. do art. 220.º, n.º 1 CPP, designadamente:
    ∙ al. a) – estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial (art. 254.º, als. a) e b) CPP);
   ∙ al. b) – manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos, independentemente da regularidade da sua feitura;
   ∙ al. c) – a detenção ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente, nomeadamente, toda a privação de liberdade que não resulta de decisão judicial de aplicação de pena, medida de segurança ou prisão preventiva;
   ∙ al. d) – ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei não a permite.

No âmbito da legitimidade, o art. 220.º, n.º 2 CPP reconhece-a ao detido, assim como a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, i.e., com capacidade eleitoral. Por sua vez, a decisão caberá ao juiz de instrução criminal da área em que o arguido se encontrar (art. 220.º, n.º 1).

Na hipótese do art. 254.º, al. b) CPP, a detenção pode ocorrer também na fase de julgamento e de recurso, e tem por finalidade a apresentação ao juiz ou ao MP competentes – aqui, a ilegalidade da detenção pode resultar da demora na apresentação perante o juiz que a ordenou. Contudo, esse será o que analisará o habeas corpus (solução algo confusa).

No requerimento deve constar um requerimento de imediata apresentação ao juiz (art. 220.º, n.º 1 CPP) e, uma vez recebido o requerimento, se o juiz não o considerar manifestamente infundado, ordena a apresentação imediata do detido, sob pena de desobediência qualificada, notificando-se também a entidade que o tiver detido. Se o juiz recusar o requerimento por manifestamente infundado, condena o requerente ao pagamento de uma soma de x UC’s. Do despacho cabe recurso, nos termos gerais.

Medidas cautelares e de polícia

As medidas cautelares e de polícia vêm previstas nos arts. 248.º a 253.º CPP, e podem ser necessárias tanto anteriormente ao processo como durante o desenvolvimento do mesmo.

A comunicação da notícia do crime (art. 248.º), auto de notícia ou denúncia, pelo OPC, deve ocorrer no mais curto prazo possível, i.e., até 10 dias depois de ter sido obtida pela polícia, tendo o OPC pleno domínio sobre a investigação pré-processual durante o período máximo de 10 dias, podendo nesse período realizar todos os atos que entender necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. Se não for competente, deve comunicar ao órgão competente no prazo de 24h (art. 10.º, n.º 2 LOIC).
   › Pinto de Albuquerque: defende que este prazo de 10 dias é inconstitucional, pois a CRP é incompatível com ações de prevenção criminal por iniciativa própria do OPC, com recolha de informações por tempo indeterminado, à revelia do controlo direto do MP. Há aqui uma violação do princípio da reserva da vida privada dos visados e do princípio da proporcionalidade, apesar de não ser incompatível com a existência de ações de prevenção criminal realizadas pelo OPC desde que comuniquem o crime logo que no decurso dessas ações tiverem notícia do crime. Mas o prazo de 10 dias não só é desconforme com a CRP, como também é incompatível com outros prazos do CPP para comunicação à autoridade judiciária de atos cautelares, como as 72h da validação da apreensão cautelar, entre outros. Desta forma, para o autor, é incompatível esta zona de ‘semi-clandestinidade’ e, como tal, propõe que o MP desaplique a norma inconstitucional e aplique o ‘prazo mais curto’, i.e., 24h, sendo o sentido da expressão no art. 254.º, n.º 1, al. b), devendo ser analogicamente aplicável este prazo.

De acordo com o art. 248.º, n.º 2, comunica-se a notícia do crime mesmo se for manifestamente infundada, pois o MP é que avalia esse aspeto.

Os OPC devem praticar todos os atos cautelares necessários e urgentes para preservar os meios de prova, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente (art. 249.º, n.º 1). E esses atos de polícia só serão integrados no processo mediante validação da autoridade judiciária competente – o OPC tem competência cautelar própria, competência essa, como já vimos, pré-ordenada para os fins do processo, e podendo ser realizada antes do inquérito, dependendo de uma convalidação que a incorpore no processo. Como tal, aos OPC só estão vedados a prática cautelar e urgente de atos que pertencem à reserva de competência do MP e do JIC (arts. 268.º, 269.º, 270.º, n.º 2 e 290.º, n.º 2), caindo os outros na reserva geral de competência cautelar do art. 248.º.

Nenhum OPC pode determinar cautelarmente a prestação de termo de identidade e residência (TIR) antes de instaurado o inquérito, pois este supõe a existência de um processo, i.e., a medida de coação não pode ser aplicada na fase pré-processual (art. 196.º, n.º 1).

Distinta da competência cautelar está a competência para prevenção criminal que, ao contrário daquela que é exercida com vista à sua futura convalidação por autoridade judiciária e devendo obedecer aos princípios gerais do processo, esta não obedece a tais princípios.

A Lei n.º 101/2001 criou um regime das ações encobertas dentro e fora do PP sob controlo da PJ. A utilização de agentes encobertos (undercover agents ou verdeckter Ermittler) é compatível com o Estado de Direito se forem acauteladas certas garantias mínimas, tratando-se de um método excecional de combate à criminalidade grave. Essa mesma lei esclarece que tem de ser funcionário da investigação criminal ou alguém sob controlo da PJ, agindo voluntariamente; tem de ser crime previsto no art. 7.º, n.º 1 LOIC, crime grave, ou atos ‘adequados’ aos fins de prevenção, nomeadamente, qualquer ato, o menos gravoso, de execução previsto no art. 22.º, n.º 2 CP, omissão ou retardamento de atos do agente, não atuação como provocador.

Desta forma, os OPC podem:
   ∙ proceder à identificação de pessoas (art. 250.º) – poder de identificar o suspeito em local público, ou de o sujeitar a vigilância policial em local aberto ao público são alguns dos poderes cautelares. Pode ser exercido numa fase pré-processual, mas tem natureza processual, i.e., preordenada aos fins do processo.
      › TC: julgou inconstitucional a identificação de uma pessoa insuspeita da prática de quaisquer crimes e em local não frequentado habitualmente por delinquentes, com base em razões de segurança interna. Este preceito estabelece um procedimento legal de identificação de suspeito que se divide em 4 fases:
               ▪ tem de fazer prova da qualidade de OPC ao suspeito, seguida da comunicação ao suspeito das circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação. Após tais diligências, faz-se a identificação do suspeito pelos documentos previstos no art. 250.º, nºs 3 e 5 e a sua condução ao posto mais próximo para identificação, onde pode estar detido até 6h.
               ▪ o reconhecimento da identidade por pessoa que só verbalmente garanta a veracidade dos factos, não terá qualquer valor jurídico, mas também não há nenhuma sanção em caso de mentira (para Pinto de Albuquerque), pelo que o OPC deve evitá-lo.
               ▪ a condução ao posto por detenção só é admissível se a pessoa não tiver sido identificada e, apenas pode estar detida por 6h! (arts. 27.º, n.º 3, al. g) CRP e 250.º, n.º 6 CPP).
               ▪ tem de ser tudo reduzido a auto de identificação e o identificado tem o direito de contactar com uma pessoa da sua confiança desde o início do procedimento de identificação e até sair do posto policial.

   ∙ colheita de informações (art. 250.º, n.º 8) – se a suspeita se mantiver ou confirmar, o OPC pode pedir-lhe ‘informações relativas a um crime e meios de prova’, às quais o suspeito não tem o dever de responder (mas é uma situação complicada porque se ele não exercer esse direito a não auto-incriminar-se, está a auto-incriminar-se). Por seu lado, se a suspeita não se confirmar, a pessoa pode fornecer informações enquanto ‘pessoa susceptível de fornecer informações úteis’. No entanto, permanece a questão: como se compatibiliza o art. 250.º, n.º 8 com o art. 59.º?

   ∙ proceder, por sua iniciativa, a revistas e a buscas, em caso de urgência (art. 251.º), e a buscas domiciliárias, aquando da detenção em flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão (art. 174.º, n.º 5, al. c)) – este artigo consagra poderes cautelares do OPC:
               ▪ art. 251.º, n.º 1, al. a) – proceder à revista do suspeito em caso de fuga iminente ou de detenção fora de flagrante delito e a buscas no lugar em que se encontrar, com exceção da busca domiciliária, sempre que tiverem ‘fundada razão para crer’ que neles se ocultam objetos relacionados com crime o crime, (…). No entanto, este artigo não se sobrepõe ao art. 174.º, n.º 5, al. c), porque este abrange o caso de flagrante delito, e aquele, o caso de fuga iminente (p. ex., uma situação em que indivíduos fazem contrabando de tabaco numa oficina e fogem, ficando a oficina aberta e já tendo recebido informações nesse sentido);
                         - art. 177.º, n.º 5 – é um caso especial de revistas a escritório de advogado ou consultório médico, em que o OPC não pode agir sozinho.
               ▪ art. 251.º, n.º 1, al. b) – proceder à revista de pessoas que tenham de participar ou pretendam assistir a qualquer ato processual ou que, na qualidade de suspeitos, se devam dirigir a posto policial, quando houver razões para crer que ocultam armas ou outros objetos.
               ▪ tem de haver sindicância imediata por parte do MP (art. 174.º, n.º 6 ex vi art. 251.º, n.º 2).

   ∙ apreender correspondência (art. 252.º) – atenção que as disposições deste artigo não constituem uma medida de pura prevenção criminal, pois a lei supõe que o crime já foi cometido, ao invés do art. 252.º-A, n.º 3, pois as disposições do art. 252.º não se destinam a evitar um perigo para a vida ou integridade física – os OPC podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações (art. 252.º, n.º 3).

   ∙ localização celular (art. 252.º-A) – a ingerência só poderá ter lugar se os dados forem ‘necessários para afastar perigo para a vida ou de ofensa à integridade física grave’. Quando não se trate de processo em curso, a localização celular terá de ser ordenada por despacho do juiz, fundamentado e é recorrível (arts. 97.º, n.º 5 e 399.º).
         › Fátima Mata-Mouros: acha que o n.º 3 é inconstitucional, por violação do art. 34.º, n.º 4 CRP, uma vez que a lei constitucional não prevê ingerências nas telecomunicações com fins de pura prevenção criminal.
 
Em síntese, eles podem proceder à identificação, levar a posto policial e recolher informações do suspeito (art. 250.º, nºs 1 e 8), deter em flagrante delito e mantê-lo detido 48h, proceder à constituição como arguido, recolher informações nos termos do art. 249.º, n.º 2, al. b) (estas pessoas não são testemunhas nem têm qualquer dever de depor, podendo recusar fazê-lo sem ter de invocar nenhum fundamento), acareação, recolher documentos, exames das pessoas, proibir a entrada de pessoas estranhas no local do crime, apreensões, revistas e buscas domiciliárias, revista de suspeito em caso de fuga iminente (art. 127.º), proceder a busca domiciliária entre as 7h e as 21h nos casos do art. 127.º, consentimento documentado e detenção em flagrante delito por crime punível com pena de prisão, proceder a buscas domiciliárias entre as 21h e as 7h com consentimento ou em casos de flagrante delito de crime com pena de prisão superior a 3 anos, apreensões nessas buscas – al. c), entre outras.