"Por
meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na
promessa um interesse digno de proteção legal, a obrigação de efetuar uma
prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte
que assume a obrigação e promissário o contraente o contraente a quem a
promessa é feita.”
Art. 443.º, n.º 1 CC
Neste contrato, uma das partes (o promitente) assume, perante a outra
(promissário), uma obrigação de prestar a uma pessoa estranha ao negócio (o
terceiro), a qual adquire um direito à prestação. Este tipo de contrato faz
nascer automaticamente um direito para o terceiro, o qual se constitui
independentemente da aceitação deste (art. 444.º, n.º 1 CC), sendo nessa medida
uma exceção ao regime da ineficácia dos contratos em relação a terceiros (art.
406.º, n.º 2 CC). A lei seguiu aqui a dominante teoria do incremento, nos
termos da qual a aquisição do terceiro verifica-se imediatamente em virtude do
contrato celebrado entre o promitente e o promissário, dispensando-se qualquer
outra declaração negocial para esse efeito. Foram, assim, rejeitadas a teoria
da aceitação que entendia que a aquisição do terceiro só se processava quando
ele manifestava a sua concordância ao promissário e a teoria da cessão que
considerava que a aquisição do terceiro como uma aquisição derivada a partir do
promissário, que apareceria como aquirente primário do direito.
§ 1.º Âmbito
O contrato a favor de terceiro tem aplicações significativas na área dos
seguros (por ex.: na área dos seguros), no domínio dos transportes (ex.: o
transportador obriga-se perante o expedidor a providenciar a deslocação de
pessoas ou de bens de um local para outro), no caso das doações com encargos
(ex.: alguém doa determinados bens com o encargo, para o destinatário, de pagar
uma pensão a um terceiro), no campo das garantias (ex.: o promitente obriga-se,
perante o promissário, a garantir uma dívida de terceiro, o que pode consistir
numa hipoteca, num penhor ou numa garantia pessoal), ou no campo parassocial.
O contrato a favor de terceiro permite às partes alcançar os seguintes
efeitos, patentes no art. 443.º, n.º 2 CC:
· remissivos de dívidas;
· transmissivos de dívidas;
·constitutivos, modificativos, transmissivos ou extintivos de direitos
reais.
Da celebração deste contrato, surgem três relações jurídicas:
· uma relação básica ou de cobertura entre as partes no contrato
(promitente e promissário) – em que se estabelecem as posições relativas do
promitente e do promissário, as prestações que devem ser trocadas entre as
partes, bem como o seu regime, e a prestação que o promitente deva fazer ao
terceiro;
· uma relação de atribuição ou
de valuta entre o promitente e o
terceiro – onde se fixa o direito do terceiro à prestação e quaisquer
condicionalismos que a rodeiem, e onde o terceiro adquire o direito à prestação
independentemente de ter dado o seu acordo (art. 444.º, n.º 1 CC). Atenção que
a relação de atribuição depende da perfeição da relação básica (art. 449.º CC);
· uma relação de execução
entre o promissário e o terceiro
§ 2.º Regime geral
*
Posição do promissário
O promissário é a pessoa perante a qual o promitente assume a obrigação
de prestar a terceiro. Contudo, é necessário que tenha, na promessa, um
interesse digno de proteção legal, como determina o art. 443.º, n.º 1 CC. Mas
esse interesse não tem de ser patrimonial e a relação básica deve ter
juridicidade; quer isto dizer que, excluindo-se as situações de pura
obsequiosidade, os contratos a favor de terceiro são possíveis e válidos, ao
abrigo da autonomia privada (ex.: admite-se, inclusive, interesses estéticos,
inconfessáveis, desde que não haja ilegalidade ou atentado aos bons costumes).
O promissário tem as seguintes pretensões:
· pode exigir ao promitente o cumprimento da sua obrigação (art. 444.º,
n.º 2 CC), o que se entende por ter sido ele a acordar com o promitente a
realização da prestação a terceiro e possuir interesse jurídico no seu
cumprimento;
· pode exigir ao promitente a exoneração do promissário de uma dívida
perante o terceiro, quando esse seja o conteúdo da promessa;
· pode exigir ao promitente as prestações ou outras vantagens que lhe
possam advir da relação básica (art. 405.º CC);
· pode dispor do direito à prestação ao terceiro ou de autorizar a sua
modificação enquanto a adesão não for manifestada (arts. 446.º, n.º 1 a contrario e 448.º, n.º 1, 1.ª parte
CC).
A lei procura ainda resolver o problema das relações entre o promissário
e pessoas estranhas ao negócio (art. 451.º, n.º 1 CC), designadamente para os
casos em que a diminuição do património do promissário, gerada pela sua
atribuição ao terceiro, não seja legalmente permitida e deva, por isso, ser
revertida, como acontece nas hipóteses de colação, imputação ou redução das
doações ou impugnação pauliana. Nesses casos, a interposição da prestação do
promitente poderia colocar em dúvida qual o valor que se deveria tomar em conta
para efeitos dessa restituição: a diminuição patrimonial por parte do
promissário ou a efetiva aquisição por parte do terceiro. A lei vem esclarecer
que apenas o primeiro desses valores é tomado em consideração para efeitos de
aplicação destes institutos. No caso de se verificar a revogação por ingratidão
do donatário, é o próprio bem recebido pelo terceiro ou o seu valor, que deve
ser objeto de restituição ao promissário (arts. 451.º, n.º 2 e 974.º CC).
*
Posição do promitente
O promitente tem, fundamentalmente, o dever de prestar ao terceiro
beneficiário. Ele assume, pelo contrato, a correspondente prestação (art.
443.º, n.º 1 CC), que lhe pode ser exigida tanto pelo terceiro (art. 444.º, n.º
1 CC) como pelo promissário, se outra não tiver sido a vontade dos contraentes
(art. 444.º, n.º 2 CC).
Caso o promitente não cumpra com o seu dever de prestação principal, a
“promessa”, ele pode ser interpelado para cumprir, quando não haja um prazo
fixado (art. 777.º, n.º 1 CC), ou ser-lhe feita uma interpelação moratória, se
na data aprazada não cumprir (art. 805.º, n.º 1 CC). Seguidamente, se após a
interpelação, o promitente continuar a não cumprir, então pode ser-lhe
intentada uma interpelação admonitória (art. 808.º, n.º 1 CC), sob pena de
haver resolução por incumprimento definitivo, caso não seja respeitado esse
prazo admonitório ou o credor perca o interesse na prestação (art. 808.º CC).
Pode ainda haver resolução por impossibilidade culposa, nos termos do art.
801.º, n.º 2 CC. Ao invés das interpelações, podem ainda serem intentadas
medidas relativas à realização coativa da prestação (art. 817.º a 830.º CC).
A serem tomadas, estas medidas podem ser intentadas quer pelo
promissário, quer pelo terceiro porque ambos são credores do promitente. O
promissário porque exerce uma posição própria, mas no interesse do terceiro,
salvo quanto a prestações que tenha diretamente direito; e o terceiro porque ao
aderir à promessa, adquire uma posição de confiança que deve ser respeitada.
Contudo, as pretensões que o promitente deve realizar dependem de ter
havido, ou não, adesão do terceiro beneficiário. Ora:
· não
havendo adesão, os contraentes podem revogar a promessa (art. 448.º, n.º 1
CC) ou modificá-la (art. 446.º, n.º 1 CC) e, como tal, por maioria de razão,
cabe ao promissário concretizar, como entender, o conteúdo potestativo da sua
posição;
· havendo adesão, o terceiro beneficiário consolida a sua posição,
podendo exercer as pretensões do credor e passando, a partir daí, a prevalecer
sobre o próprio promissário; no entanto, se a “promessa” consistir em exonerar
o promissário de uma dívida para com o terceiro (art. 444.º, n.º 3 CC), pode
haver uma inversão do regime porque a remissão é contratual (art. 863.º, n.º 1
CC) e o beneficiário é o próprio promissário.
* Posição do terceiro
O terceiro é quem adquire, pelo contrato a seu favor, imediatamente, o
direito à prestação, independentemente de aceitação. Ou seja, ele não se limita
a ser apenas o recetor material da prestação, possuindo face ao promitente um
direito de crédito a essa mesma prestação.
O facto de tanto o terceiro como o promissário poderem exigir do
promitente o cumprimento suscitou alguma discussão na doutrina. Para Leite
de Campos, estaríamos perante um fenómeno de concorrência funcional entre
dois créditos, um próprio do terceiro, e outro do promissário, coadjuvante
deste. Já Menezes Leitão segue Teixeira de Sousa, considerando
que existe aqui apenas uma única posição jurídica objetiva que permite a
aquisição da prestação, que é o direito de crédito de terceiro,
independentemente da vinculação subjetiva do promitente ocorrer tanto em
relação ao terceiro como ao promissário.
O terceiro pode, nos termos do art. 447.º, n.º 1 CC:
· rejeitar (em homenagem ao
princípio invito beneficium non datur)
mediante declaração ao promitente, devendo este, depois, comunicar ao
promissário. Se o promitente faltar culposamente à comunicação, irá ter de
responder perante o promissário (art. 447.º, n.º 2 CC); ou
· aderir mediante declaração
ao promitente e ao promissário (art. 447.º, n.º 3 CC); ou
· nada fazer.
Ambas as declarações podem ocorrer tacitamente, segundo as regras gerais
(art. 217.º CC).
Havendo rejeição, o direito do terceiro à prestação extingue-se. O que
sucede ao dever de prestar, a cargo do promitente? Apesar do silêncio do Código
Civil, pela interpretação do contrato concluímos que, à partida, a rejeição do
terceiro não exonera o promitente da sua prestação principal, uma vez que ela
foi assumida perante o promissário. Como tal, essa prestação passa a caber ao
promissário, i.e., o promitente tem
agora que prestar ao promissário, exceto se outra coisa resultar da vontade das
partes ou da natureza do contrato.
Por sua vez, havendo adesão, a promessa torna-se
irrevogável (art. 448.º, n.º 1 a
contrario CC) e firme (art. 446.º, n.º 1 a contrario e a fortiori
CC) não podendo haver disposição nem modificação do seu objeto. A adesão não
traduz um ingresso do terceiro no contrato nem se destina a permitir ao
terceiro a aquisição do direito, uma vez que este é adquirido logo com a
celebração do contrato. A sua função é a de consolidar um contrato que, por não
ter sido celebrado com o terceiro é, antes dela, instável pois pode, até lá, haver
a revogação da promessa.
Contudo, ainda assim, quando o terceiro manifesta a sua adesão, a
promessa pode ainda ser revogada no caso da mesma só dever ser cumprida após a
morte do promissário (art. 448.º, n.º 1 CC), ou, se se tratar de uma liberalidade,
se se verificarem os pressupostos da revogação por ingratidão do donatário
(arts. 450.º, n.º 2 e 970.º CC).
§ 3.º Regimes especiais
*
A promessa de liberação de dívida como falso contrato a favor de terceiro
É feita uma distinção entre os verdadeiros contratos a favor de terceiro
(arts. 443.º e 444.º, nºs 1 e 2 CC) e os falsos contratos a favor de terceiro
ou contrato impróprio, de que seria exemplo a promessa de liberação (art.
444.º, n.º 3 CC).
Estamos, neste caso, perante uma situação em que o promitente e o
promissário acordam numa obrigação de resultado: a de que o promitente obterá a
extinção de uma dívida que o promissário tenha para com o terceiro.
Embora o promitente não assuma uma obrigação perante o terceiro, para
obter o resultado dessa liberação do promissário, naturalmente que terá que
efetuar uma prestação a esse terceiro. Só que essa prestação é meramente
instrumental em relação à obrigação do promitente, que é antes a de obter a
liberação do promissário. Assim, considera-se que só o promissário tem
interesse na promessa. Daí que, qualquer lei considere que as partes não
visaram atribuir ao terceiro qualquer direito de crédito, mas apenas proceder à
exoneração do promissário, pelo que só o promissário poderá exigir do
promitente o cumprimento da promessa.
*
As promessas em benefício de pessoas indeterminadas ou no interesse público
Uma outra situação
consiste na hipótese de a designação do beneficiário da prestação se referir a
um conjunto indeterminado de pessoas ou de corresponder mesmo a um interesse
público. A especialidade desta hipótese é que temos uma legitimidade difusa para
a exigência da prestação e, como tal, o art. 445.º CC permite que tanto o
promissário como os seus herdeiros possam reclamar o cumprimento da prestação e
confere legitimidade às entidades competentes para defender os interesses em
jogo.
Antes de haver a adesão do terceiro, o contrato é revogável, mas apenas
enquanto o promissário for vivo (art. 448.º, n.º 1 CC). Por seu lado, tanto os
herdeiros do promissário como as autoridades competentes não podem dispor do
direito à prestação nem autorizar qualquer modificação no seu objeto (art.
446.º, n.º 1 CC). Não possuem, como sucede com o terceiro, um direito de
crédito à prestação do promitente, mas apenas, à semelhança do que sucede em
geral com o promissário (art. 444.º, n.º 2 CC), um mero direito de reclamar a
prestação do promitente para o fim estabelecido.
A haver revogação, esta cabe ao promissário, salvo quando a promessa for
feita no interesse de ambos os outorgantes, caso em que depende do
consentimento do promitente (art. 448.º, n.º 2 CC). Ora, temos de ter presente
a natureza contratual da remissão (art. 863.º, n.º 1 CC), pelo que, a regra
será a do mútuo interesse em qualquer contrato – a revogação pressuporá, em
regra, o mútuo acordo do promitente e promissário (art. 448.º, n.º 2, 2.ª parte
CC).
* A promessa a cumprir depois da morte
do promissário
A promessa a cumprir depois da morte do promissário é uma exceção ao
regime do art. 444.º, n.º 1 CC, uma vez que o terceiro não pode exigir o
cumprimento da promessa antes da verificação da morte do promissário. É
duvidoso se, neste caso, as partes pretendem atribuir ao terceiro de imediato
um direito de crédito sobre o promitente, pois ele apenas se vencerá no momento
da morte do promissário, ou se pretendem que o direito de crédito apenas se
constitua após a morte do promissário, beneficiando, até lá, o terceiro de
apenas uma expectativa jurídica. Teoricamente, a diferença entre as duas
soluções é a de que na primeira, caso o terceiro morra antes do promissário, os
seus herdeiros sucedem no seu direito sobre o promitente; e no segundo caso,
essa sucessão já não se verifica uma vez que o terceiro quando morreu não era
titular de qualquer direito que pudesse transmitir aos seus herdeiros.
Numa posição entre as duas soluções, a lei vem presumir que a
estipulação das partes é no sentido de que o terceiro só adquire o direito com
a morte do promissário (art. 451.º, n.º 1 CC), mas que, se aquele falecer antes
deste, os seus herdeiros são chamados no lugar dele à titularidade da promessa
(art. 451.º, n.º 2 CC). A aparente contradição deve ser resolvida através da
sua adequada interpretação. É manifesto que se o terceiro não adquire qualquer
direito antes da morte do promissário, a aquisição dos herdeiros resulta do
próprio contrato a favor de terceiro. O que a lei estabelece são duas regras
imperativas: a de que o direito só é atribuído com a morte do promissário, e a
de que o promissário designa subsidiariamente como beneficiários os herdeiros
do terceiro, no caso deste falecer antes de adquirir esse direito. Qualquer uma
destas presunções é ilidível (art. 350.º, n.º 2 CC), através da estipulação de
que a celebração do contrato faz adquirir imediatamente o direito, ou através
da estipulação de que só o terceiro poderá beneficiar da promessa.
Outra característica é o facto de a promessa ser sempre revogável
enquanto o promissário for vivo, independentemente da aceitação do terceiro
(art. 448.º, n.º 1 CC), o que, saliente-se, sucede que o direito já tenha sido
adquirido pelo terceiro, quer a aquisição se verifique após a sua morte. A
revogação pode ser expressa ou tácita, como sucederá na hipótese de o
promissário resolver designar ao promitente outro beneficiário da promessa.
§ 4.º Especificidades
* Os meios de defesa oponíveis pelo
promitente – art. 449.º CC
Como a posição do terceiro beneficiário está confinada ao que resulte do
contrato, o promitente pode opor-lhe os meios de defesa que resultem desse
mesmo contrato (por ex.: fundamentos de nulidade ou de anulação, exceção de não
cumprimento ou alteração das circunstâncias), mas já não pode usar dos meios
que lhe advenham da relação que tenha com o promissário (ex: a que conduza a
uma compensação).
* O papel dos deveres acessórios
O contrato a favor de
terceiro apresenta muitas fragilidades, como por exemplo:
· o promitente, quando se desempenhe perante o terceiro, não tem, sobre
si, a fiscalização da contraparte, o que o pode fazer menos diligente ou até
falsificar a conduta a que se encontra adstrito;
· o promissário, por não ser o destinatário da prestação acordada, pode
desinteressar-se dela ou não dispor dos elementos necessários para se assegurar
a sua integralidade;
· o terceiro, não sendo parte no contrato, desconhece os precisos termos
envolvidos ficando em inferioridade no momento do cumprimento.
E estas fragilidades devem ser ultrapassadas através de adequados
deveres acessórios, impostos pelo sistema, através da regra da boa fé (art.
762.º, n.º 2 CC). As duas partes e o terceiro ficam envolvidos em deveres de
segurança, de lealdade e de informação, daí que: o terceiro deve receber a
efetiva prestação acordada; o promitente não pode desencantar o promissário; e
o promissário não deve piorar a posição do promitente.